O ateu que se dizia "profundamente religioso"

Era já um escritor conhecido quando o confronto com a divindade lhe traçou o perfil de iconoclasta. Gostou e quis mais.
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"Como se morre?  Nesse instante extremo, sentiste um respirar que te alargava e te expandia mais os olhos até os confins do universo inteiro? Abriste os olhos? Só em sonhos viste? Morreste - como se morre?"

Jorge de Sena,  o também  iconoclasta e também exilado e também excessivo e desastrado e controverso Sena, desaparecido em 1978, não podia ter escrito isto para Saramago - o Saramago cuja Fundação o homenageou em 2008, no Teatro São Carlos. Mas serve-lhe bem, na perfeição, o poema - à medida da interrogação que se fazia em 1991, numa das entrevistas a propósito do lançamento do seu Evangelho Segundo Jesus Cristo. "Não sei o que me acontecerá. Sei o que aconteceu a outros, súbitas revelações, sou humano, estou sujeito também a coisas dessas."

Coisas dessas: a maldição de Jean Barois (livro do francês Roger Martin du Gard, publicado em 1913, em que um ateu empedernido que em jovem fora católico se converte perto do fim), o medo da morte que, escrevia e dizia e sabia,  fez os homens "inventar Deus". Mas 18 anos depois do Evangelho,   declarado blasfemo pelo então   bispo de Braga, Eurico Dias Nogueira, e distinguido com a exclusão da lista de candidatos a um prémio europeu  pelo então subsecretário de estado da Cultura, Sousa Lara (o secretário de Estado era Santana Lopes e o primeiro-ministro Cavaco), e já muito debilitado, Saramago voltará a afirmar a sua descrença de forma ainda mais brutal, chamando em Caim "filho da puta"ao deus dos cristãos e considerando a Bíblia imprópria para jovens: "Não é um livro que se possa deixar na mão de um adolescente. Aquilo só tem maus conselhos. Assassínios, incestos. Aquilo é um desastre."

Se no Evangelho descrevia um Jesus "demasiado humano",descrevendo o sexo com Maria Madalena e, à maneira de Scorcese em A  Última Tentação de Cristo  (1988), colocando-o na cruz a renegar o destino e a invectivar Deus, em Caim arremete com tudo o que tem contra um deus que manda um pai degolar um filho. "Se nos pusermos a ler a Bíblia, sobretudo o Pentateuco, os cinco primeiros livros, percebemos que tudo aquilo é absurdo e pior que absurdo, muitas vezes é criminoso - que Deus mande a Abraão matar ao seu filho  Isaac para provar a sua fé, só isso devia apagar da nossa cabeça a ideia de Deus." E se em entrevista a José Rodrigues dos Santos, na RTP,  admite que pode ter-se excedido, fá-lo com tanta ironia que o reconhecimento é mais um desafio . "Bem, tirando o 'filho da puta', que realmente poderia não o ter escrito, é que nem sequer pode ser filho da puta! … Deus não tem Mãe nem tem Pai não tem nada disso, bem ai talvez… reconheco que posso ter-me excedido. Agora no resto? Rancoroso?  Francamente! Implacável? Cruel?"

Acusado muitas vezes - como de resto todos os ateus mais vocais, de "obsessão com Deus", ou até de oportunismo  por "cavalgar", com Caim, a onda "ateísta" internacional desencadeada pelo sucesso de A Ilusão de Deus (publicada em 2006 pelo biólogo  britânico Richard Dawkins), dizia de si em 1991: "É preciso um altíssimo grau de religiosidade para fazer um ateu como eu. No sentido etimológico de religião, tomada como aquilo que liga, o que sinto é essa grande ligação a tudo (...)."E, em 2009: "Se Deus para mim não existe não se pode fazer um ajuste de contas com algo que não existe. A minha mentalidade no fundo é uma mentalidade cristã.Os meus valores e tudo isso estão empapados de cristianismo. Às vezes dizem-me: por que é que você que é ateu se preocupa tanto com Deus ou se ocupa dele tantas vezes? Porque Deus está aqui. Onde está Deus? Na cabeça de cada um de nós."

Deus como interrogação e silêncio e vazio, então - a peça que falta, que faltará sempre e que dói e arde, a ferida que não cicatriza nunca, como admitia em 1991 ao também já desaparecido Torcato Sepúlveda no Público: "Se há qualquer coisa que me irrita em relação a ter de morrer um dia, é que vou daqui sem perceber nada disto. E quando digo sem perceber nada disto... Enfim, perceber isto aqui onde estamos já é difícil mas - eu sei que vou dizer uma banalidade terrível - sem perceber o universo. Irrita-me no plano intelectual ter falhado o momento da explicação do universo, irrita-me!" Morreste como se morre, dir-lhe-ia Sena.

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